terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

“O Brasil passou para a primeira divisão do FMI”

 

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fevereiro 15th, 2011 |  Autor: Jussara Seixas

O Fundo Monetário Internacional acaba de anunciar uma de suas maiores reformas, com redistribuição das cotas de participação e aumento significativo do peso de países em desenvolvimento, em especial dos que compõem o BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), cuja atuação em conjunto reforçou o novo caráter multipolar do mundo pós-crise. “Com a reforma o Brasil passa para a primeira divisão do Fundo, e está entre os dez maiores em termos de cotas e poder de voto no FMI”, destaca Paulo Nogueira Batista, lembrando que, quando a reforma for concluída, o país passará da atual 18ª posição para a 10ª, integrando o grupo central do Fundo.

Bruno de Vizia – Desafios ao Desenvolvimento (IPEA)

Ao chegar ao Fundo Monetário Internacional em 2007 o economista Paulo Nogueira Batista se deparou com uma instituição bem diferente da atual. Naquele ano a crise que abalou, e ainda abala, as finanças no mundo era apenas um rumor, a liderança econômica dos Estados Unidos e Europa era incontestável, e o Fundo era tido por muitos como o algoz dos países em desenvolvimento, quase que exclusivamente seus únicos clientes.

Três anos depois a instituição acaba de anunciar uma de suas maiores reformas, com redistribuição das cotas de participação e aumento significativo do peso de países em desenvolvimento, em especial dos que compõem o BRIC (acrônimo para o grupo que inclui Brasil, Rússia, Índia e China), cuja atuação em conjunto reforçou o novo caráter multipolar do mundo pós-crise. “Com a reforma o Brasil passa para a primeira divisão do Fundo, e está entre os dez maiores em termos de cotas e poder de voto no FMI”, destaca Nogueira Batista, lembrando que, quando a reforma for concluída, o país passará da atual 18a posição para a 10ª, integrando o grupo central do Fundo.

Após a crise, o Fundo se tornou uma espécie de “braço direito” do G-20 (grupo formado pelos ministros da economia e presidentes de bancos centrais dos 19 países de economias mais desenvolvidas do mundo, mais a União Europeia) que foi alçado ao posto de principal foro de discussão econômica do mundo, explicou o economista, que representa o Brasil e mais oito países no Fundo (Colômbia, Equador, República Dominicana, Haiti, Panamá, Guiana, Suriname e Trinidade e Tobago).

E para Nogueira Batista, que, se expressando em caráter pessoal, concedeu entrevista à revista Desafios ao Desenvolvimento (IPEA), por telefone, direto de Washington, o aumento do peso econômico e político de países como Brasil, Índia e China “não é um fenômeno conjuntural, é estrutural, e tende a continuar”.

Desenvolvimento – Passados mais de dois anos do início simbólico da crise (a falência do banco Lehman Brothers, em 15 de setembro de 2008), há sinais de recuperação da economia em diversos países, enquanto em outros o sistema financeiro balança. Neste cenário, quais as perspectivas para a economia global? Estamos falando de uma recuperação mais lenta que o inicialmente previsto, mais rápida, diferente?

Nogueira Batista – É preciso fazer pelo menos uma grande distinção: a recuperação dos países de economias emergente, de um lado, e a falta de uma recuperação convincente dos países desenvolvidos, de outro. Em retrospecto, podemos dizer que a recuperação em alguns dos principais países de economia emergente, inclusive o Brasil, foi mais rápida e mais forte do que se esperava. Mas nos países centrais, especialmente nos Estados Unidos e na Europa desenvolvida, a situação econômica e financeira é muito mais problemática do que se imaginava. A crise não acabou, obviamente, para os países desenvolvidos. O estrago provocado pelos excessos especulativos e pela hipertrofia dos sistemas financeiros ainda está sendo digerido, com um altíssimo custo social e econômico.

Com isso houve uma mudança muito grande no quadro mundial, em termos econômicos e políticos. O prestígio e a influência das potências tradicionais ficaram abalados. Por outro lado, o crescimento muito rápido de países como China, Índia e Brasil está aumentando a sua influência econômica e política. Isso se reflete em instituições como o FMI, onde o equilíbrio de poder vem se modificando nos últimos dois ou três anos.

Desenvolvimento – Esta reorganização já era prevista na recuperação econômica mundial?

Nogueira Batista – A crise reforçou uma tendência que era anterior. Já havia uma tendência de crescimento do peso relativo de países de economia emergente e em desenvolvimento. O fenômeno não é conjuntural, mas estrutural. Na crise, os países de economia emergente, em sua maioria, tiveram períodos de recessão ou desaceleração relativamente breves, e recuperaram o crescimento já em 2010 de maneira muito clara e forte, às vezes até com sintomas de superaquecimento. A China e o Brasil, por exemplo, já entraram na fase de tomar medidas para conter a expansão da demanda interna.

Desenvolvimento – Alguns efeitos da crise, como a queda nos fluxos de comércio internacional, parecem passar mais rapidamente do que outros, notadamente o aumento do desemprego, que persiste em economias mais avançadas. Há previsão para a retomada do emprego? É possível retomar os níveis de emprego pré-crise?

Nogueira Batista – Tudo indica que a recuperação nos EUA e na Europa vai ser lenta demais para permitir que a taxa de desemprego caia rapidamente. Então, o cenário mais provável no horizonte visível é que o desemprego continue muito alto tanto na Europa avançada quanto nos EUA. Alguns países podem se recuperar um pouco mais rapidamente, como a Alemanha, mas o quadro geral não é favorável. A situação é especialmente grave naqueles países como Grécia e Irlanda, que não têm moeda nacional e estão sendo obrigados a ajustes draconianos para fazer face ao colapso de bancos ou à perda de acesso a financiamento nos mercados internacionais. Com isso provavelmente teremos uma erosão muito forte da base política e social dos governos que estão no poder agora. O governo Obama está muito enfraquecido, outros governos de países desenvolvidos também, porque a população tende a vê-los como responsáveis por uma crise que não passa, ou que está sendo superada muito lentamente, com muita perda de emprego, queda de salário real e outros fenômenos desse tipo.

Desenvolvimento – Mas é possível termos nestes países uma recuperação sem restabelecer o nível de emprego?

Nogueira Batista – É possível argumentar que não faz nem sentido usar a palavra recuperação enquanto o desemprego estiver anormalmente alto. A recuperação só será visível para a população como um todo quando o desemprego cair, não digo para níveis pré-crise, mas para níveis mais próximos de uma média histórica.

O problema não é só a taxa de desemprego, mas a proporção dos desempregados que estão fora do mercado de trabalho há muito tempo. O desemprego de longo prazo é elevado e crescente. Isso tende a provocar uma queda na taxa de crescimento potencial da economia, porque a pessoa que fica muito tempo desempregada perde capacidade de trabalho, qualificação, ou seja, perde empregabilidade, para usar o jargão.

Assim também acontece com as empresas que ficam com muita capacidade produtiva instalada ociosa. Inicialmente a capacidade pode ser reaproveitada quando o mercado volta a crescer, mas se ela fica ociosa por muito tempo, acaba havendo um processo de erosão dessa capacidade, que se torna obsoleta, ou pode até mesmo ser descartada.

Em outras palavras, um período de desemprego prolongado provoca uma queda do chamado PIB potencial. Uma recessão longa destrói capacidade produtiva e reduz de forma duradoura o potencial de crescimento da economia. O quadro aqui nos EUA e também na Europa é bastante sombrio; não há nenhum sinal de que o problema do desemprego elevado venha a ser superado no horizonte visível.

Desenvolvimento – Nos EUA há um debate recente sobre a prorrogação ou não por mais algum tempo do auxílio desemprego para aqueles que estão fora do mercado de trabalho há mais de dois anos, e recebendo o benefício. Por um lado há a necessidade de auxílio, por outro há o temor de desestimular o cidadão a procurar um novo emprego. Como ficam os governos neste impasse?

Nogueira Batista – Chegou-se em dezembro a um acordo que permitiu prorrogar esse auxílio ao desemprego em troca da prorrogação dos cortes de impostos introduzidos pelo governo Bush (George W. Bush, 2001-2008), inclusive daqueles que beneficiam os muito ricos. Mas a solução alcançada é precária e muito controvertida. O problema é que o governo Obama ficou tão enfraquecido depois do resultado da eleição parlamentar de novembro [na qual a oposição ganhou maioria na câmara dos deputados, a partir de 2011] que ele tem muita dificuldade de fazer passar qualquer iniciativa pelo Congresso. O quadro é, volto a dizer, muito problemático aqui nos EUA. Parece evidente que a queda do nível de emprego não resulta de falta de vontade de trabalhar. Fundamentalmente, o problema é de falta de demanda, isto é, deficiência da demanda agregada de consumo e de investimento. O Estado ficou de mãos amarradas, porque não há apoio político para as medidas de estímulo fiscal, que seriam necessárias neste momento.

A reativação da demanda acabou dependendo demais da política monetária. O Federal Reserve está adotando uma política expansiva, mas o efeito pode não ser suficiente. A demanda pode não responder muito a estímulos monetários nas atuais circunstâncias.

Desenvolvimento – Em crises anteriores eram majoritariamente os países pobres e em desenvolvimento que procuravam auxílio do FMI. Nesta já receberam recursos países como a Grécia, que faz parte da zona do Euro, e, mais recentemente, a Irlanda. Especula-se que será necessário ainda socorrer Portugal, Itália, e, talvez, a Espanha. Podemos esperar mais países de economias desenvolvidas procurando auxílio do Fundo?

Nogueira Batista – Quando eu cheguei ao FMI em 2007 todos os clientes do Fundo eram países pobres, países em desenvolvimento de baixa renda, com exceção de um, a Turquia, e não havia nenhuma perspectiva que isso fosse se alterar. O que parecia se configurar era um quadro em que o FMI iria financiar sobretudo países de baixa renda. Com a crise isso mudou completamente. Muitos países de nível médio de renda voltaram a recorrer ao Fundo, sobretudo na periferia europeia, e até mesmo alguns países desenvolvidos, na verdade três: a Islândia, a Grécia e a Irlanda, havendo possibilidade de que outros países desenvolvidos europeus venham a pedir apoio do Fundo. Desde os anos de 1970, países desenvolvidos não recorriam ao Fundo.

Desenvolvimento – Quais são as diferenças no apoio aos países ricos?

Nogueira Batista – Quando um programa é formulado, o Fundo deve levar em conta circunstâncias específicas de cada país. Não deve tratar um país desenvolvido com as mesmas técnicas e prioridades com que trata um país africano, por exemplo. Mas o Fundo tem linhas de crédito que permitem, em princípio, atender países de qualquer tipo, e isto é o que está sendo feito. A crise se deslocou para o centro do sistema internacional, não é mais uma crise da periferia, como foram as crises da Ásia, da Rússia ou do México, em épocas anteriores.

Para os países de baixa renda, os programas do FMI são subsidiados, enquanto para os países desenvolvidos ou de nível médio de renda as taxas de juro podem ser inferiores às praticadas pelo mercado, mas não são negativas em termos reais, ou subsidiadas. Além disso, nos países de baixa renda a dimensão financeira da crise econômica também é menos importante, porque eles têm mercados de capitais e financeiros menos desenvolvidos, às vezes bastante rudimentares.

Desenvolvimento – É possível para o FMI reverter essa imagem “negativa” entre os países em desenvolvimento?

Nogueira Batista - É um processo demorado. A atuação do FMI na Ásia e na América Latina, por exemplo, deixou marcas profundas em alguns países, que não serão superadas facilmente. O Fundo deu alguns passos para melhorar a sua imagem, mas é longo o caminho a percorrer.

O FMI foi criado por europeus e americanos, e até hoje é dominado por eles. Isso só começa a mudar nos últimos anos, por vários motivos: por causa da crise, que abalou muito as potências tradicionais, por causa da atuação conjunta dos BRIC, por causa do crescimento dos países de economia emergente, entre outros fatores. É um processo que está em andamento e que está levando a uma mudança da governança global. Uma parte importante disso foi a ascensão do G-20 à condição de principal foro econômico internacional. Outro aspecto é a reforma do Fundo, que está em andamento, com uma primeira etapa negociada em 2008 e outra agora em 2010. O ritmo das mudanças se acelerou com a crise. À medida que os países perceberem que as mudanças estão ocorrendo, a confiança no Fundo aumentará.

Não creio que o Fundo possa ter grande influência sobre a “guerra cambial”. Nem os EUA, nem a China parecem dispostos a adaptar as suas políticas econômicas a considerações de ordem global. Prevalece a busca do interesse nacional, especialmente em períodos de crise. A política monetária dos EUA é definida exclusivamente com base no quadro nacional; o eventual impacto externo das decisões do Fed (Federal Reserve) tem pouco ou nenhum efeito sobre suas decisões. A China não difere nesse particular.

Pensa primeiro em si mesma; segundo, em si mesma; terceiro, em si mesma. O Brasil não tem condições de apostar em um acordo global no âmbito do FMI ou do G-20. Teremos de continuar tomando medidas de auto-proteção no âmbito brasileiro.

Desenvolvimento – O controle de capitais seria uma alternativa? Há mais receptividade para essa alternativa no FMI atualmente?

Nogueira Batista – Sim. É bom lembrar que os países membros do Fundo não têm, enquanto tal, qualquer obrigação legal de manter as suas contas de capitais aberta, de assegurar a livre movimentação internacional dos capitais. Obrigações nessa área existem para os membros da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e da área do euro, mas não no FMI.

O que tem acontecido é que o Fundo, nas suas análises e documentos, tem sido mais aberto a medidas de controle de capitais do que era antes. A crise abalou muitos tabus, um deles é a convicção de que a liberalização do capital era sempre positiva. Países que mantiveram a conta de capitais relativamente fechada, como China e Índia, tiveram bom desempenho durante a crise, já diversos países que liberalizaram rapidamente não tiveram desempenho tão favorável, ou até entraram em crise.

A crise global provocou revisão de muitos conceitos, e o Fundo passou a encarar com menos resistência, digamos assim, as medidas de controle de capital. Comparando com o que eu ouvia do corpo técnico do Fundo em 2007, hoje temos uma abordagem mais eclética dessa questão, o que para nós é bom, porque o Brasil foi um dos países que já lançou mão de medidas de restrição à movimentação de capitais. Então, é bom que haja um reconhecimento internacional de que essas medidas podem ser necessárias ou recomendáveis.

Portanto, o Fundo pode contribuir para discutir o tema, fazer avaliações mais objetivas, menos carregadas de preconceito, mas acho difícil que ele possa fazer o papel de árbitro, e nem sei se isso interessaria ao Brasil.

Desenvolvimento – Como as modificações nos fóruns multilaterais, em especial a ascendência do G-20 como principal foro de interlocução, afetaram o FMI? Foi positiva esta mudança?

Nogueira Batista – Foi positivo para o Brasil, porque ele passou a fazer parte do grupo central. Antes era o G-7, do qual fazem parte apenas países desenvolvidos, que servia como o principal foro de cooperação para assuntos econômicos internacionais.

Para o Fundo essa mudança também foi positiva. Com a crise, o G-20 assumiu um papel de coordenação e, na prática, o FMI se tornou uma espécie de braço direito, de secretariado do G-20.

Desenvolvimento – O diretor-gerente do FMI, Dominique Strauss-Kahn, afirmou após a última reunião do Fundo que houve acordo para “a maior reforma da história” da instituição, dando mais poder aos emergentes. Quais foram as principais mudanças?

Nogueira Batista – Esse acordo representa um avanço importante. Ele foi resultado de uma longa e intensa negociação no G-20 e no FMI. O Brasil teve papel importante nessa negociação. A batalha foi dura. Como o FMI cresceu muito durante a crise, em termos de recursos e atribuições, houve uma intensificação da luta pelo poder dentro da instituição. A resistência à mudança é grande, principalmente da parte dos europeus, que estão sobre-representados na instituição. Apesar disso, o resultado foi bom para nós.

Quando o acordo entrar em vigor, o Brasil passará para a primeira divisão do Fundo, figurando entre os dez maiores em termos de cotas e poder de voto no Fundo, junto com os Estados Unidos, o Japão, os quatro grandes europeus (Alemanha, Reino Unido, França e Itália) e os demais BRIC. Na situação atual, o Brasil está na 18ª posição.

O Brasil será o segundo maior beneficiário da reforma de 2010 em termos de aumento de cota e poder de voto, depois da China. A reforma favoreceu também outros países de mercado emergente e em desenvolvimento, inclusive membros do G-20, como Coreia, Índia, Indonésia, México, Rússia e Turquia. A reforma não resolveu, porém, o problema de legitimidade do Fundo. A transferência líquida de cotas de países avançados para países emergentes e em desenvolvimento será de apenas 2,8 pontos percentuais, muito aquém do que vínhamos defendendo nos vários estágios da negociação.

Desenvolvimento – É possível avançar ainda mais? Existe uma meta ou limite para o crescimento do Brasil no Fundo?

Nogueira Batista – Sim, é possível avançar ainda mais. Os representantes dos BRIC na negociação conseguiram incluir três elementos no acordo, que vão garantir a continuidade do processo de revisão da estrutura de votos e de cotas do Fundo. Foi a forma que encontramos para compensar, em parte, algumas limitações do acordo, especialmente a modesta transferência líquida de votos para os países em desenvolvimento como um todo.

Primeiro, decidiu-se promover a revisão abrangente da fórmula distorcida de cálculo das cotas até janeiro de 2013, para melhor refletir os pesos econômicos relativos dos países. A fórmula atual favorece muito os europeus que vão resistir até a morte e fazer o possível para diluir a revisão prevista no acordo. Também se acertou que a nova fórmula deve servir de base para um novo realinhamento de cotas e poder de voto, que deve ser concluído até janeiro de 2014. Como terceiro ponto, estabeleceu-se que o aumento de 100% das cotas será acompanhado de uma redução correspondente dos empréstimos feitos ao Fundo por diversos países, evitando que futuros realinhamentos de cotas sejam protelados com o argumento de que o Fundo tem recursos em abundância.

Desenvolvimento – Existe um posicionamento comum entre Brasil, Rússia, Índia e China nas discussões no Fundo?

Nogueira Batista – Para todos os efeitos práticos, quando cheguei ao FMI em 2007, não existia BRIC. Mas em 2008, por iniciativa da Rússia, formou-se essa aliança, em iniciativa muito bem recebida pelo Brasil, pela Índia e China. Os quatro países atuaram de forma conjunta, tanto em 2008 quanto em 2009 e em 2010, mas neste ano, para ser franco, houve mais dificuldades e divergências.

A principal dificuldade em 2010 foi que a China passou a ficar mais atraída pela possibilidade de atuar de maneira isolada. O peso dela cresceu muito na economia mundial: é o país que mais cresce em termos absolutos e relativos, e isso pode ter levado as lideranças chinesas a se inclinar por uma atuação em faixa própria.

De qualquer forma, nos últimos três anos essa aliança foi uma das principais alavancas do Brasil aqui no FMI e também no G-20. Os BRIC passaram a ser reconhecidos como uma instância de negociação por outros países. Um exemplo disso é que o secretário do Tesouro dos EUA, Timothy Geithner, em três ocasiões, pediu para comparecer a reuniões do BRIC, para dialogar com ministros dos países que compõem o bloco.

Desenvolvimento – O que Brasil, Rússia, Índia e China têm em comum? Há divergências?

Nogueira Batista – À primeira vista, as diferenças são maiores do que as semelhanças. O traço central de união, a meu ver, é que os quatro são países de grande porte da periferia do sistema internacional que, por serem de grande porte, conseguem atuar de forma independente das potências tradicionais.

Os países de mercado emergente em desenvolvimento, em sua maior parte, ainda são relativamente dependentes ou caudatários das grandes potências. Neste ponto central, os BRIC se diferenciam da maioria dos países em desenvolvimento. Não quero citar exemplos, mas a grande verdade é que não podemos contar para nada, ou quase nada, com diversos outros países em desenvolvimento tal o seu grau de dependência econômica, política e até psicológica em relação aos EUA ou aos principais países europeus. O complexo de vira-lata talvez tenha deixado de existir no Brasil – ou entrado em estado de hibernação -, mas continua vivo em grande parte do mundo em desenvolvimento.

Desenvolvimento – Mas e a dependência mútua entre as duas maiores
economias?

Nogueira Batista – Os EUA e a China sozinhos são muito importantes, mas o mundo já é multipolar, e vai ser cada vez mais. A multipolaridade não vai ser substituída por uma nova bipolaridade, entre China e EUA. Temos o Japão, a Europa, o Brasil, a Índia, a África do Sul, a Rússia. A multipolaridade está aí para ficar, claro que com um peso muito específico da China e dos EUA, mas também com muita divergência de interesses entre os dois. Não me parece que a China vá trocar os BRIC por um G-2, como se fala às vezes.

Desenvolvimento – O mundo pode confiar no crescimento da China como sua “nova locomotiva” econômica? Quais as consequências para a economia global caso o gigante asiático decida, por exemplo, reduzir seu ritmo de crescimento para conter sua inflação?

Nogueira Batista – Ninguém pode se fiar em ninguém, porque os países atuam de uma forma consistente com seus interesses em primeiro lugar. Em segundo lugar, os países podem derrapar. Espero que isso não aconteça, mas pode haver uma queda abrupta do crescimento da China provocada por dificuldades econômicas daquele país. Portanto, ninguém deve ficar excessivamente dependente de nenhum país em particular. Um ponto forte do Brasil é que nós temos uma estrutura de comércio e de relações econômicas internacionais muito diversificadas, e devemos manter isso.

Desenvolvimento – Como o senhor avalia o desempenho do Brasil no enfrentamento da crise nestes últimos dois anos? E a América Latina, como se saiu nesse intervalo?

Nogueira Batista - O Brasil teve um desempenho bom, eu diria que bem melhor do que o esperado. Isso por vários motivos. Um deles foi o volume de reservas internacionais acumulado antes da crise, especialmente em 2006 e 2007. Outro motivo: a nossa posição de balanço de pagamentos em conta corrente era forte.

A maior parte da América Latina também se saiu bem. Isso surpreendeu, uma vez que a região tem uma longa e penosa tradição de vulnerabilidade a choques externos e passou por diversas crises cambiais e financeiras. Uma exceção importante foi o México, muito afetado por sua excessiva dependência em relação aos EUA.

Desenvolvimento – O tripé formado por câmbio flutuante, metas de inflação e superávit primário parece ter se estabelecido no Brasil como doutrina (quase dogma) tanto para partidos que compõem a base do governo, quanto para os do bloco de oposição. O senhor concorda com essa orientação?

Nogueira Batista – Nesse nível de generalidade, não há muito do que discordar. Mas é um consenso enganoso que esconde mais do que revela. Por exemplo, o regime de metas para a inflação pode ser definido de forma flexível, como no Brasil, ou de forma mais rígida. Se a rigidez for excessiva, o regime se torna contraproducente. Outro exemplo: é melhor ter câmbio flutuante, mas não flutuação pura de livro-texto. A flutuação deve ser acompanhada de intervenções do Banco Central no mercado cambial, medidas prudenciais, regulação do mercado e dos fluxos de capital, etc.

Desenvolvimento – O senhor é admirador declarado do escritor Nelson Rodrigues, que após a derrota do Brasil na Copa de 1950 cunhou a expressão complexo de vira-latas, já citada pelo senhor nesta entrevista. Com o recente ciclo de crescimento brasileiro, e com perspectiva de avanço econômico nos próximos anos, seria possível afirmar que o país superou este complexo? Caso não tenha superado, o que falta?

Nogueira Batista – Bem, como dizia Nelson Rodrigues (para não perder o hábito), “subdesenvolvimento não se improvisa; é obra de séculos”. É difícil acreditar que o nosso célebre complexo de vira-latas tenha sido completamente extirpado. Isso dito, fizemos progresso – mais do que eu imaginava que seria possível. Como disse o Chico Buarque, o Brasil passou a ser um país que não fala fino com os EUA nem grosso com a Bolívia. Não faz muito tempo, o quadro era tão diferente! No período Collor-FHC, o complexo de vira-lata estava com uma vitalidade total, dava arrancos triunfais de cachorro atropelado (para citar Nelson Rodrigues outra vez).

Carta Maior

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